sábado, 27 de março de 2021

A volta ao Mundo no 28E numa sexta-feira de desconfinamento


Habitualmente procurado por turistas, o eléctrico 28E é agora usado sobretudo pelos locais que acabaram por reconquistar o espaço, que outrora foi ocupado por quem nos visitava. A pandemia da Covid-19 é a grande responsável pela mudança deste paradigma. Se muitos procuravam o 734 como recurso para não viajarem em modo sardinha em lata no eléctrico, agora apanham o que chegar primeiro à paragem. Mas a ausência de turismo, ou dito por outra forma, a quebra de turistas em massa como se verificava constantemente a bordo do 28E, não invalida que se continue a fazer uma viagem à volta do mundo entre o sobe e desce constante desta carreira que é certamente a mais conhecida do mundo. 

Com início no Martim Moniz e vista para o Castelo que lá no alto testemunhou durante anos as longas filas para o eléctrico, em plena freguesia de Santa Maria Maior, o 28E parte agora com alguns bancos ainda vazios e muito poucos ou quase nenhuns passageiros de pé, salvo a excepção para as primeiras horas do dia, ou para as horas ditas de ponta. As filas para o 28E dão agora lugar a filas para a refeição daqueles que passam por dificuldades financeiras ou que não têm um abrigo para pernoitar. As paragens repletas de gente enganam quem pense que esperam por um transporte da carris. 

Chega a hora de iniciar viagem e de deixarmos Santa Maria Maior, para começar-mos a subir a rua da Palma em direcção a Arroios, aquela que é provavelmente a freguesia mais multi-cultural da capital. Da China ao Japão, do Nepal ao Bangladesh, do Paquistão à Índia. Mas há mais, da Rússia à Ucrânia, das Filipinas à Argentina. Há de tudo e para todos gostos. Porta sim, porta não, há uma loja aberta, ou temporariamente encerrada, devido às restrições do Estado de Emergência. Aberta está sempre a porta do eléctrico para transportar estas comunidades que trabalham e habitam, seja na própria freguesia ou nas vizinhas. O 28E é assim um transporte de eleição para aqueles que além da obrigatória máscara, entram de turbante, de vestidos traçados e cumpridos, de toucas ou lenços. Não admira portanto que o cheiro a especiarias se transporte de vez em quando entre um sobe e desce constante entre curvas no 28E.

Mas o 28E serve também de transporte a quem procura entregar comida, sim há um ou dois trabalhadores independentes da Glovo e Uber Eats que usam o eléctrico como meio de transporte para satisfazer os pedidos dos seus clientes, que esperam de forma electrizante por satisfazer a gula. Deixamos a freguesia de Arroios rumo à de São Vicente, mas não sem antes subirmos a colina lado a lado com a Penha de França, onde o eléctrico que desce a Rua Angelina Vidal está na Penha de França e o que sobe está em Arroios.

Entramos na zona mais frequentada da carreira por estes tempos. A Graça, onde Covid parece ser palavra desconhecida. O comércio local e os supermercados acumulam filas na porta que se encolhem por instantes para o eléctrico prosseguir a sua marcha rumo a Alfama. Avistam-se alguns turistas para espanto de alguns locais e para alegria dos proprietários dos alojamentos locais. Com o chegar da noite o eléctrico vai perdendo a sua multiplicidade de nacionalidades e vão-se vendo os rostos comuns do dia-a-dia por estas horas. São aquelas pessoas que acabam a sua jornada laboral e procuram o 28E para o desejado regresso a casa. 

Rostos conhecidos do dia-a-dia onde se trocam uns dedos de conversa de cortesia. Num instantes mergulhamos na freguesia da Misericórdia que outrora por estas horas da noite já estaria com as ruas repletas de gente para uma noitada no Bairro Alto. Para já, o aglomerado - embora nada comparado com o de outros tempos - é na porta da Manteigaria onde estão sempre 4 ou 6 pessoas à espera dos pasteis de nata, por enquanto ao postigo, a troco da simpatia de quem do outro lado nos recebe sempre com um sorriso. 

A viagem prossegue já com a noite a espalhar a sua magia e com a freguesia da Estrela no encalço. As luzes dos interiores das habitações começam a colorir as ruas por onde passam o eléctrico, e através das janelas vemos algo que por vezes nos passava ao lado. Famílias reunidas ao jantar, pessoas a trabalhar na secretária, a praticarem exercício físico, ou simplesmente a ler um livro ou a meditarem. A viagem à volta do mundo está prestes a acabar com a nossa chegada a Campo de Ourique, mesmo à porta do cemitério dos Prazeres, onde reina o sossego quebrado pelo som dos pássaros e de mais um eléctrico que acaba de chegar. 

São 21h55 e está na hora da última partida do 28E. É altura de voltar ao Martim Moniz onde daí partirei para Santo Amaro, onde dou por finalizado mais um dia. Espero que tenham tido uma boa viagem a bordo da nossa companhia. 

Lisboa, 27 de Março de 2021   

1 comentário:

Flor disse...

Adorei a viagem e a descrição do guia.

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