sexta-feira, 31 de maio de 2019

Com a paciência a esgotar, Lisboa qual será o teu destino?

O dia começa como tantos outros. A chegada à estação de Santo Amaro faz-se ainda pela fresca quando os dias prometem ser escaldantes. As temperaturas sobem acima dos 30º C e as pessoas ficam impacientes e por isso, trabalhar de madrugada nestes dias é a melhor opção, mesmo para quem goste pouco de acordar cedo. Levanta-se a chapa do horário que dita a escala de serviço, deslocamos-nos até ao pilar do Car-Barn onde está a tabela que indica o eléctrico que nos foi atribuído, durante as poucas horas que estiveram em descanso, nas 24 horas que tem cada dia. 

O procedimento é rotineiro. Baixar o trolley, verificar os areeiros, colocar as bandeiras de destino e numéricas de acordo com a carreira e iniciar o serviço na consola que nos identifica e localiza através dos monitores que estão na Central de Comando de Tráfego da Carris, em Miraflores. Ligam-se as luzes interiores, liga-se o farol e liga-se a corrente dos motores. Instantes depois já estamos a receber os primeiros passageiros do dia, os que se deslocam para os empregos e os que regressam a casa, seja do trabalho ou de uma noite de folia. 

A cidade acorda lentamente, mas num instante tudo muda. O sol nasce e a noite dá lugar ao dia. As ruas quase vazias, enchem-se de tudo e mais alguma coisa, desde pessoas a trotinetes. Uma antítese quase perfeita no quotidiano de uma cidade que mudou bastante nos últimos anos, devido ao boom turístico. Lisboa está nas bocas do mundo e deixa no limite quem nela trabalha.

São 9h06 e faltam poucos minutos para iniciar mais uma viagem na carreira 15E com destino a Algés. Turistas enchem por completo a paragem da Praça da Figueira em busca do eléctrico que os leve a Belém. Uns mais prevenidos, entram e validam o seu título de transporte. Outros entram e vão direitos à cabine do guarda-freio. Há de tudo e para todos os gostos, desde perguntas sobre paragens, como comprar o bilhete ou até quem coloque a nota na ranhura da porta que nos permite o acesso à cabine, como se fosse possível retribuir qualquer troco ou vender bilhetes por uma abertura que muitas das vezes, não tem mais que meio centímetro.

A viagem inicia-se entretanto, mas pouco depois já estamos parados na Rua dos Fanqueiros. Um carro mal estacionado impossibilita a passagem do eléctrico porque a condutora deixou a roda da frente virada para a esquerda. São questões de centímetros que se transformam em minutos. Toco a campainha insistentemente em busca do seu proprietário, mas nem sempre com sucesso. Desta feita, a senhora sai de uma loja em frente com os seus sacos. Pede desculpa e diz que foi só ali fazer uma compra rápida. Os meios entretanto accionados, são cancelados e a viagem prossegue. 

Novo dia, novo problema mas outros actores. Estamos na carreira 28E com destino ao Martim Moniz. A primeira paragem prolongada é para descarga de mercadorias no supermercado. O local das cargas e descargas está ocupado por ligeiros e a descarga, faz-se entre cada passagem de eléctrico. Perda de tempo para o eléctrico e para quem descarrega paletes de um camião cheio de bens essenciais. Os passageiros desesperam por chegar a horas ao seu destino, mas até que o atinjam, ainda paramos por causa de táxis, TVDE'S, e outras cargas e descargas. 

"ó chefe é só um minuto!"... Multipliquemos então por uma média de 5 a 6 paragens por trajecto. A chegada ao destino acaba por ser atrasada e isso obriga a uma partida atrasada na viagem seguinte. Circular em Lisboa num transporte público pode tornar-se portanto numa autêntica matemática viva. Chegamos à Sé, na entrada de Alfama, onde tuk-tuks tomaram, de há uns anos a esta parte, conta de todo o espaço disponível.  Mesmo com a Polícia Municipal presente, ou os seus carros, são ignorandos traçados da marcação rodoviária e ignorado muitas das vezes a sinalização vertical, em busca de clientes, mesmo que saibam que o eléctrico passa ali, mas que ali vai parar porque as frentes dos tuks não o deixam prosseguir viagem devido ao estacionamento em espinha, muitas das vezes abusivo, inclusive em passadeiras e paragens. 

Prosseguimos finalmente viagem, mas a passo de caracol porque entretanto um barulhento tuk-tuk apanha clientes ao virar da esquina e o condutor vai tentando render o seu "peixe" explicando isto e aquilo a uma velocidade que permite quase tirar uma fotografia a cada janela por onde se passa. Em instantes estaremos com o Tejo aos nossos pés, visto das Portas do Sol, onde a selva parece ser a melhor designação para a balbúrdia que por ali se assiste com os chamados serviços de animação turística. O facto é que por vezes a confusão dá mesmo lugar a uma animação para quem nos visita ao ver discussões, agressões, que são pintadas com um cheiro a embraiagem constante.

Chegamos às Escolas Gerais, local destinado exclusivamente aos eléctricos no sentido ascendente, mas no semáforo que é accionado pelo eléctrico estão já 3 automóveis ligeiros. Toco a campainha para saírem da frente. Não entendem, e sou obrigado a sair do eléctrico e pedir para que saiam da frente, para que o sinal seja accionado. Explico que estão em sentido proibido, e quase sempre ignoram. Mais uns minutos perdidos...

Estou finalmente a poucos metros de chegar ao Martim Moniz, mas não sem antes ser ultrapassado por um TVDE que pára de imediato na frente do eléctrico para apanhar uns clientes que acabaram de sair do Ramiro. Apanha os clientes, arranca e o semáforo fica vermelho. Chego finalmente ao Martim Moniz e a fila dos que aguardam a partida seguinte é longa, mesmo que o sol esteja escaldante. Pois todos querem um lugar sentado após tanto tempo de espera, que só é muito por isso mesmo, porque querem ir sentados. 

Com os Santos Populares à porta, as carrinhas de cerveja também aumentam no reforço dos stocks de cafés, restaurantes e arraiais. Estamos agora na carreira 25E com destino aos Prazeres num novo dia de trabalho. Já perdi a conta às vezes que tive de imobilizar o eléctrico, abrir a porta, fechar um retrovisor que impede a passagem, ou verificar se o estribo do eléctrico não bate no carro que ficou para cá da marca delimitadora do lugar. É das zonas mais problemáticas da rede de eléctricos. Onde os minutos acumulados se transformam facilmente em horas e em viagens canceladas. 

Passada a zona crítica, seguem na minha frente cerca de 10 segways com um guia na frente. Vão circulado entre os carris como se fossem até, a simular a viagem a bordo do 25E, mas numa versão mais soft e fresca, mesmo que para isso empate quem vem atrás. Parece não haver regras para nada e tudo pode circular na via de rodagem. Os passageiros que já habitualmente desesperam com os carros mal estacionados, gritam pela janela para saírem "com essa treta da frente que vamos trabalhar pá!", sem sucesso. 

Termino um retrato semanal na 24E, com trotinetes que tentam vencer a inclinação da Rua da Misericórdia. Pelo meio o trânsito num pára-arranque provocado por um acesso ao bairro alto condicionado e por um autocarro espanhol que se cruzou no estreito com uma carrinha da cerveja. Ouvem-se buzinas. Os turistas param para ver o que vai dar. Quem segue atrás nos passeios, tem de recorrer à via de trânsito para passar os turistas que pararam para ver as manobras. Lisboa parece a certa altura um molho de brócolos. 

A paciência esgota-se, o calor toma conta de nós. Os horários tornam-se impraticáveis e de quem é a culpa? É do guarda-freio, que facilmente se torna em saco de encher por parte de quem entra após algum tempo de espera, e que entra com reclamações por isto e por aquilo. Um dia de trabalho pelas colinas de Lisboa, está por esta altura equiparado a uma viagem de comboio na Índia, onde vale tudo menos arrancar olhos. Vale-nos o gosto pelo que fazemos e a necessidade de o fazer, porque não sabemos qual será o destino desta cidade que está cada vez mais bonita, mas cada vez mais caótica, sobretudo para quem trabalha num transporte público, onde há muito deixou de haver respeito por corredores BUS, paragens, ou prioridades. 

Afinal de contas, todos temos direito à cidade e ao aproveitar do turismo para a sustentabilidade de cada negócio, mas sem regras dificilmente se alcançam bons objectivos e acima de tudo uma boa imagem. A que ponto vamos chegar com a cidade a rebentar pelas costuras? Lisboa qual será o teu destino?   


[n.d.r.: Fotos do autor / DN / Razão Automóvel / Dinheiro Vivo]

2 comentários:

CR 35 disse...

Anda ao governo a incentivar o uso do transporte público....Ou o Fernando Medina toma iniciativas mais radicais ou não vale a pena pôr carreiras de bairro e carreiras regulares, qualquer mosquito interrompe. A Polícia Municipal é escassa , se estão presentes não estão para se chatear,siga a paralelos antes que chova. Boas viagens a bordo das casinhas amarelas.

Isabel disse...

Estas descrições são o máximo! Ficarão para a posteridade. Daqui a muitos anos alguém vai ler este contributo para a história de Lisboa. O caos ...

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