Poderia ser um dia como tantos outros na carreira 15E, com um vai e vem constante de carros de um lado para outro, turistas que se atropelam para entrar e sair, mesmo quando há uma porta para entrada e uma para saída, no autocarro que costuma estar afecto ao reforço da carreira, mas lá haveria de chegar aquela parte próxima do almoço em que na Paragem de Belém com destino à Praça da Figueira, haveria de estar alguém para tornar diferente ou igual a tantas outras, a manhã deste sábado. A fila de autocarros e eléctricos prolongava-se alguns metros e na minha frente seguia o 729 que por sua vez circulava atrás do eléctrico articulado que estava prestes a chegar à paragem para largar e receber passageiros. Eu estava sentado ao volante aguardando a minha vez para poder abrir portas e ver os turistas entrarem como verdadeiros "Obvikwelos" em busca de um lugar sentado.
E quando estamos a menos de 4 metros na paragem, o suficiente para estar já encostado à ilha das paragens mesmo em frente aos Pasteis de Belém, eis que dispara o alarme da emergência como se de um tiro de partida se tratasse numa qualquer corrida dos jogos olímpicos. Mas é falso alarme. Apenas actos de turistas que julgam que o botão de emergência, mesmo que coberto de uma borracha transparente e com necessidade de alguma pressão para ser accionado, é o botão mágico da abertura da porta para poderem entrar. Mas esse apenas eu tenho acesso. Indico-lhes que a paragem é mais à frente.
Quando chega a minha vez de receber passageiros já são poucos os que restam porque entretanto seguiram viagem no eléctrico que estava na frente do 729. Restaram alguns habitantes locais provenientes desse mesmo 729, que embora chateados saúdam-me e sentam-se. Mas bastou arrancar para começarem os desabafos, e diga-se nada simpáticos para com o colega do 729... «Estes velhos que já deviam estar na reforma... Pedi-lhe para abrir a porta para apanhar o eléctrico e disse que não podia, vejam só», exclamava algo exaltado um senhor alto, magro de barbas cumpridas e óculos de sol. De imediato ganhou adeptos no banco da frente. «Esquecem-se - mas não são todos! - que se não fôssemos nós a viajar nem tinham dinheiro para lhes pagar o ordenado...» dizia com toda clareza a senhora da frente.
Esquecem-se estes passageiros das regras e que para serem respeitados têm de se dar ao respeito, contudo, de imediato a conversa e os desabafos seguiram outros rumos. O senhor das barbas, prosseguia com a palavra... «o ser humano é o ser mais ruim ao cimo da terra. Não vê estes bandidos a matarem inocentes?! É o início da 3ª. Guerra Mundial. Esse Trampa que é translocado e ainda o apoiam...» e a plateia não aplaudia mas concordava. «Nunca vi isto como está agora, anda tudo à balda, é mães a matar filhas é pais a fazerem relações sexuais com as filhas, isto tá tudo perdido», rematava a senhora da fila oposta.
Mais uma paragem e mais um tema de conversa, mas sempre com o senhor das barbas como actor principal. «Ó minha senhora, eu já vivi muito, eu quero é ter dinheiro para comer, o resto que se lixe. Se pudesse ajudava muita gente, aliás até já ajudei bastante por isso é que não tenho nada», exclamava em tom alto para que não restassem dúvidas. «Agora dizer que não podia abrir a porta? Isto no tempo dos ingleses é que andava na linha...», voltava atrás na conversa, mas com mais adeptos noutros temas.
![]() |
Provavelmente o senhor das barbas até está aqui :) |
Uns entravam, outros saiam, uns abandonavam a conversa e outros juntavam-se ao mesmo tempo que outros limitavam-se a ouvir como era o meu caso. «Este homem que está aqui foi profissional de futebol pelo Belenenses, Braga e Porto, fui 16 vezes internacional e já tive muito dinheiro comigo, por isso agora quero é ter o essencial para sobreviver. Formei os meus filhos e comprei-lhes casa, eles é que são a minha família. Irmãos e etc... queriam era andar a passear com as mulas. Agora admite-se um rapaz no continente tirar 2 carcaças para comer e o segurança ir atrás dele e chamar a polícia? Disse: não chama nada, eu pago as carcaças ao rapaz.» Contava ao mesmo tempo que dizia «até me estou a arrepiar, porque faço de coração, não é por gabarolice».
A certa altura chega-se à conclusão que o futebol actual «está um nojo, por isso é que eu não vejo. Só tenho orgulho no Ronaldo ser português e por ser o mais humilde dessa gente toda. Querem-lhe é estragar a carreira com as gajas a quem ele não passa cartão e que dizem que foram para a cama com ele...», dizia convicto, ao ponto de tornar longa a viagem e acerta altura o monólogo, que já só ia sendo interrompido pela senhora da frente dizendo «o senhor está revoltado, tenha calma que até lhe faz mal».
A certa altura já desorientado com o debate e com a mistura de temas, sai no Cais do Sodré com um pé e entra com outro porque «nem é aqui e já estou a sair...», até que à entrada da Rua da Prata pergunta-me se não efectuo paragem ali. Digo-lhe que não porque é a carreira 15E. «Obrigado jovem, isto é que é cordialidade, perguntar e responder como deve ser, agora pedir para abrir a porta e dizer que não pode, quando estava junto ao passeio?!», desabafava uma vez mais sobre a situação que lhe havia transtornado a manhã.
O debate chegava no entanto ao fim com o fim da viagem na Praça da Figueira, numa viagem onde se falou da Carris e da sua história, da 2.ª guerra mundial, do Trump, da possível 3ª guerra mundial, do futebol do Ronaldo e do tempo do senhor das barbas que com 70 anos afirmava a cada frase já ter vivido muito por este mundo fora. E assim foi a volta ao mundo na carreira 15E com vivências, desabafos e revolta daquele a que se pode realmente apelidar de verdadeiro "velho do Restelo" dado o seu palmarés.
1 comentário:
Afinal quem era o cromo da bola?
Enviar um comentário