sábado, 5 de maio de 2012

Um 'retrato' bairrista do 18, e seus costumes...

Passaram largos meses. Não me recordo até, da última passagem pela carreira 18E. Era carreira frequente nos meus serviços quando me transferi dos autocarros para os eléctricos, mas nunca morri de grandes amores por ela, talvez por andar por caminhos pelos quais me "cansei" de andar ao volante do autocarro 742. Mas nunca deixei de defender a sua existência, nem que pela simples mas afincada ligação das gentes da Ajuda. Várias foram ao longo dos tempos, as tentativas para a sua extinção, mas várias foram também as formas de luta de quem não quer imaginar a Ajuda sem o 18E.

Hoje voltei então a andar pelos carris da carreira que agora liga o Cais do Sodré ao Cemitério da Ajuda, e se a carreira tem vindo a sofrer alterações, nomeadamente no seu horário e percurso com o mais recente encurtamento, que deixou de ter por exemplo a Praça do Comércio na sua espinha, já quem nela se transporta parece não ter mudado nada. Por necessidade própria de sair cedo, voltei a um serviço que dispenso - a madrugada - e cedo constatei que os velhos hábitos se mantêm inalteráveis. Reconheci alguns passageiros quer pela sua estatura, conversa ou simples gestos durante a viagem.

Ainda o relógio marcava as 7h00, e poucos eram os que andavam nas ruas da Ajuda, onde os pássaros trauteavam talvez brindando o nascer do dia sem a chuva que se tinha feito sentir durante a noite. Mas o aparecer do sol, trouxe para a rua gente que segue rotinas. Vai-se ao pão, mas ao da Boa Hora porque dizem «ser cozido a lenha, o que dá mais sabor». Vai-se ao mercado porque o peixe é fresco e os legumes têm cores outrora encontrados nas hortas que faziam parte de Lisboa quando a cidade ainda era uma aldeia. Uma aldeia calma semelhante à acalmia verificada ainda hoje numa manhã de fim-de-semana no bairro da Ajuda, onde as floristas continuam a dar cor a um terminal que pouco tem de bonito.   

«Bom dia Sr. Guarda-Freio. Então vai a conduzir em pé? Que grande maçada...», reparava uma senhora que entrara na Calçada da Tapada para se deslocar também ela ao Mercado da Boa Hora. Se há gente quem nem saúda o tripulante, esta senhora provou que ainda há quem repare na existência de alguém que a conduz, como aliás acontece naquela carreira. Na verdade fiz algumas viagens de pé, porque a cadeira aparentava também ela sinais de uma longevidade semelhante à dos muitos passageiros que por ali se transportam. 

Restabeleci-me no meu posto no final da viagem. Dou a volta ao Duque da Terceira e regresso à Ajuda. Um grupo de franceses pretende ir para o Museu Nacional de Arte Antiga e enche o eléctrico até ao Cais da Rocha onde deixam lugar para quem vai trabalhar, ou para quem regressa de uma noite de folia, talvez para esquecer a crise. Uns vão entrando e outros saindo. Uns cumprimentam e outros nem sequer olham. Há até quem dê sinais de querer dizer algo, até chegar à rápida conclusão que estão perante um condutor de transporte público, interrompendo de imediato o movimento dos lábios.

Em 10 minutos chego à Boa Hora até porque não há trânsito em Lisboa. O largo apresenta então, um movimento que contrasta com o matutino, onde a azáfama é agora rainha, porque há sacos para levar para casa e almoços por fazer. Entre muitos passageiros, uma senhora diz-me que fica ali à frente «porque vou já sair na próxima e era para ir a pé, mas assim é mais uma validação para ajudar a manter o eléctrico que eles nos querem tirar...», dizia com convicção.

Parecia falar com conhecimento de causa e acusava até «a alteração do 760 com o 714 é para isso mesmo. O que julga? Eles é que pensam que somos tapadinhos, mas de tapados, só temos a calçada e é a da Tapada», ironizava também despedindo-se de seguida com um «até logo e bom serviço, que ainda vou pôr a panela da sopa ao lume...»

Uns a caminho da Ajuda, outros a caminho do Calvário e pelo meio, sempre alguns turistas que por coincidência ou não, acabam por conhecer a Ajuda com o eléctrico 18E um eléctrico sem dúvida bairrista e com muitos costumes enraizados, mas que segundo os seus passageiros «tem os dias contados mas faz muita falta»...
E enquanto houver que desfrutem e tenham boas viagens a bordo do eléctrico da Ajuda!

1 comentário:

CR 35 disse...

O Governo insiste numa rede de transportes mais eficaz .Estou completamente de acordo .....mas da seguinte maneira,reformular toda a rede de autocarros para que se mantenham as actuais carreiras de eléctricos e se possível activar mais algumas a partir de uma Mapa ZERO !como a rede do Metro não se pode mexer então articula-se os autocarros a partir das estações terminais de Comboios ,Barcos e de Metro só assim se consegue manter com o mesmo material circulante um serviço de qualidade.Já sei que vão referir que estão a preparar as coisas para a privatização ,mas se eles o conseguem fazer então quem administra o também consegue.

Translate