
Na verdade a senhora queria mesmo sair na paragem seguinte, mas ao parar o eléctrico na paragem ainda fiquei com dúvidas. Virei-me para trás e perguntei se não tinha pedido para sair. Responde-me que sim e acrescenta que «é para ir ali à papelaria de baixo comprar... como é que aquilo se chama?.... Aquelas coisas muito engraçadas que há, sabe?! Credo, como é que me esqueci do nome daquilo...» e permanece na porta do eléctrico, como que se estivesse indecisa se sairia ou não.
Começo interiormente a contar até cinco ao mesmo tempo que já os restantes passageiros bufavam pelo tempo ali perdido, até que já do lado de fora me diz «olhe não interessa o nome, mas são umas coisas que lá vendem muito engraçadinhas para o meu neto levar para a escola....» Mas afinal o que a senhora queria mesmo, era sair pela frente, no meio de tanta conversa.
Ora quem com menos conversa, faz prever o que se vai passar depois de entrar é o já aqui referenciado, e ao qual apelidei de "sr.poliglota". Mal entra é certo ter conversa para a tarde toda e em todas as línguas. Depois há aqueles que estão incertos no destino. Se o eléctrico leva bandeiras de destino de "Martim Moniz", mandam parar e ao abrir da porta dizem... «desculpe, mas pensei que ia para a Graça!» Chega então altura de tentar perceber se a pessoa está mesmo perdida, ou se está simplesmente a gozar, porque já não foi uma nem duas as vezes que tal me aconteceu. Digo então que «Vai para o Martim Moniz, mas passa primeiro pela Graça...» e claro está que a pessoa duvida sempre do tripulante. «Passa na Graça mesmo? Não tem de dizer Graça?»
Conto até 3 com os botões da consola e digo que não é minha missão enganar os clientes! Até porque se estou a dizer que passa na Graça é porque passa. Mas pronto, lá se vai dando o benefício da dúvida até porque a pessoa pode mesmo não ser de cá embora tudo o faça crer que sim.
Depois há as incertezas nos destinos de quem anda por andar ou se não o faz parece. «Boa tarde, passa em Sapadores?», pergunta-me uma jovem na paragem dos Anjos. Digo-lhe que sim. Solicita-me um bilhete e senta-se no único lugar disponível à janela. O eléctrico começa a subir em direcção a Sapadores e alguém solicita a paragem, mas a jovem que havia perguntado por Sapadores permanece impávida e serenamente sentada. Pensando que estava distraída, pergunto-lhe se não iria querer sair em Sapadores, dado que já lá estávamos. «Não, obrigado mas vou continuar até ao Chiado.» Será que mudou de planos ou perguntou por Sapadores só por perguntar?!
E para terminar há sempre aqueles passageiros que mal avistamos ao longe depois de uns bons dias seguidos na mesma carreira, já sabemos que nos vão trazer chatices, ou pelo cheiro, ou pelo feitio. Na 25E é a conhecida por "velha dos gatos", que deixa um perfume indesejável assim como um mau estar unânime, mas a qual há muito não apanho (ainda bem) ou o senhor que habitualmente entra nos Poços Negros na carreira 28E.
De colete na cervical e muleta na mão entra sempre no eléctrico cumprimentando o guarda-freio com um «boa tarde jovem!» e um aperto do braço com bastante força, deixando mesmo marcas da sua passagem. Espero que se sente, mas se ninguém lhe cede o lugar... temos pano para mangas. A revolta do senhor consegue-se mesmo ouvir na Estrela mesmo que estejamos já no Camões e por muito que se tente acalmar, é escusado e o melhor mesmo é chegar o mais de pressa possível ao Chiado, onde costuma sair.
Com este senhor perde-se sempre no mínimo 4 minutos para subir e outros 4 para descer e não é que esteja incerto no destino, mas porque tem muita certeza em querer desabafar os seus males e a sua revolta enquanto se transporta entre o Poço dos Negros e o Chiado. E é por estas e por outras que nós tripulantes somos muitas das vezes o muro das lamentações do povo.
Foto: Autor desconhecido
2 comentários:
Ele há cada cromo, e alguns são mesmo dificeis de sair...
É precisa mesmo muita paciência!
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