domingo, 8 de novembro de 2009

«Uma aventura na... 742», podia ser o nome de um livro!

«Só um bocadinho que vem ai uma senhora a correr...», dizem do lado de fora logo na paragem seguinte á rendição que deu início a mais um dia de trabalho. As portas mantiveram-se abertas e a senhora lá vinha a correr, mas passou o autocarro e só terminou a sua corrida quando entrou no carro que estava uns metros á frente mal estacionado. É aquilo a que se chama tempo perdido. Mas nem só no serviço acontecem situações que nos dão que pensar. Ainda antes de pegar ao serviço, deslocava-me eu para Alcântara no 714 quando na paragem de Santos uma senhora - armada em chica esperta -, decide entrar pela porta de trás do autocarro depois de ver que haviam muitos turistas para entrar.

Aquela falta de respeito e a imagem que fazia transparecer de um país cada vez menos organizado, revoltou-me internamente e forçou-me, a que delicadamente e até porque ali estava junto á porta de saída, lhe chamasse a atenção, que "a porta da entrada é a da frente minha senhora. Até porque não há nesta entrada validadores". «Não me interessa! Eu tenho passe e está ali uma fila muito grande...», dizia-me como se fosse dona e senhora de tudo e de todos e como se fosse eu que estivesse errado. Ainda lhe tentei explicar que as filas são para se respeitar e que o autocarro não fugia da paragem sem todos os passageiros terem entrado, mas foi pior a emenda que o soneto. «Até já vi várias pessoas a entrar por trás quando está muito cheio e nem vou lá passar o passe.. que se lixe», dizia-me já com um ar de revoltada e com o rosto completamente "pintado" de rosa por lhe ter alertado apenas que aquela era uma porta de saída.

Começava em grande o meu dia de trabalho!

O certo é que se a manhã até passou rápido, já a tarde começava de forma a que fazia prever que custasse a passar. Mal rendo o colega na P.Chile e me sento na cadeira, uma voz do fundo diz «anda lá com isso pá». Como a pá é amiga da vassoura e como a vassoura não faz parte da minha ferramenta de trabalho, nem liguei. A porta de trás estava ainda aberta e se era só por uma paragem... Ajeito o volante, posiciono a cadeira, efectuo a rendição na consola e carrego no botão para fechar as portas e lá vinha de novo o «anda lá com isso pá» !

Na paragem seguinte o passageiro que estava tão apressado saiu, e logo me apercebi que o melhor foi mesmo nem responder porque parecia não regular muito bem, algo que já vai fazendo parte da colecção dos «cromos» que por vezes aparecem na 742 e que somos "obrigados" a aturar.

A chuva volta a cair ainda que timidamente, mas era suficiente para molhar alguns cérebros mais frágeis que á mínima pinga começam a disparatar, como o homem que entra na Praça Paiva Couçeiro e pergunta-me se passava por Santa Apolónia. Respondo-lhe negativamente, mas ainda assim, entra e senta-se. Com o cair da chuva miudinha, há que abrandar a marcha até porque o piso parece manteiga. Talvez por isso, a chapa da frente se atrasasse e é cortada.

Pedem-me da central que logo que possível, que avance. A chuva caía já com mais força e se alguns regressavam do trabalho, outros vinham do passeio e normalmente são estes que reclamam sempre o atraso do autocarro. Já perto de Santo Amaro, uma senhora com ar oriental entra com o seu chapéu de chuva que teimava em não fechar. Depois de algum esforço, lá se fecha e a senhora alça a perna em esforço porque a saia comprida não lhe oferecia mobilidade.

Passa o título no validador e este dá "inválido". Solicita-me um bilhete e o chapéu volta-se a abrir já dentro do autocarro. Ela fecha-o ao mesmo tempo que procura naquela confusão que são, as malas das senhoras. O chapéu teima em abrir-se e lá lhe disse "veja lá se consegue fechar o chapéu e depois procura o dinheiro para o bilhete, antes que aleije alguém sem querer...", chateada com a minha atenção, respondeu-me agressivamente que «o meu chapéu não aleija ninguém, fique descansado. O que aleija muita gente é o que se vê há muitos anos...»

Percebeu o que a senhora quis dizer? Eu também não, mas foi o suficiente para a minha boca não se abrir mais. Vi logo que não valia a pena. Era só mais uma... Pagou o bilhete com 10 euros e fiz-lhe o troco. Quando me preparava para tirar do bolso a nota de 5 euros que faltava para concluir o troco, alerta-me que «dei-lhe 10 euros, senhor!», pois deu mas também ainda não me tinha ido embora.

Há dias em que o melhor é mesmo nem ligar porque é o tempo, é o stress, é a fadiga, é a falta de respeito e por vezes a falta de com quem desabafar. O motorista é portanto a pessoa indicada para estas pessoas descarregarem energias. Já no sábado tinha sido assim na 106. E estes são apenas mais alguns dos exemplos reais, (como todos os que até aqui têem sido relatados) que fazem por vezes, e como já tenho percebido pelos comentários de alguns colegas, que pensemos que "afinal não é só comigo que isto acontece".
Certo é também que esta é mesmo uma carreira que dava para mais um número da série de livros de «Uma aventura...», dadas as situações que diáriamente nela ocorrem. Seria sem dúvida mais um êxito para as escritoras Ana Maria Magalhães e a actual Ministra da educação Isabel Alçada. É por estas e por outras que a nossa profissão é diferente de todas!

14 comentários:

Filipe disse...

Rafael, peço desculpa pelo que vou dizer a seguir, mas essa coisa de se ir no 714 no percurso que o 15/28 efectua também não é muito positiva.

Diariamente, à custa de passageiros que entram no 714 sentido Outurela e que se apeiam em Santos, Alcântara, Junqueira ou Belém, muita gente nesses locais fica privada de apanhar um autocarro para Restelo, Caselas, Parque de Campismo, Portela ou Outurela porque o autocarro vai cheio de gente que fica umas paragens mais à frente.
Idêntico fenómeno acontece com o 18, onde muitas vezes fiquei já apeado em Santos porque o eléctrico ia apinhado com passageiros que vão descer na Infante Santo ou no Calvário, fazendo-me esperar outros 17 minutos por outro eléctrico!
Já expus a situação à Carris inúmeras vezes, desde sugestões de paragens separadas no Cais do Sodré (sítio onde entra a maior parte dos "prevericadores") para o 18 e 714 para evitar estas situações incómodas, desde umas chamadas de atenção para evitar que os passageiros se apoderem de carreiras que servem melhor outros, ou mesmo reforço no 18 e 714. Mas no 18 é complicado pela falta de eléctricos, no 714 não vai ser um ou dois autocarros que irão resolver a situação já que é carreira para 50 minutos de viagem. E, convenhamos, que há que ajustar a oferta à procura e na Outurela não há mercado suficiente para encher de 714.

Enfim, parece que perante a falta de algum bom senso por parte dos passageiros, vai-se ficando a ver passar autocarros e eléctricos. Alguns tripulantes permitem a entrada pela porta traseira, embora não seja uma situação muito legal, ao menos não prejudica o utilizador do 714 que vai além-Belém e não fica à espera outros 24 minutos só porque houve quem não quisesse esperar mais 3 minutos pelo 15 que vinha atrás.

Em boa hora foi decidido não transportar passageiros na 113 entre Belém e o Restelo para não prejudicar os passageiros que iam para a Amadora.
Devia ser feito o mesmo no 18 e no 714.

Helder Reis disse...

Serviço nocturno. das carreiras de serão e verias como tudo isto que vives é "normal", desde fumar dentro do autocarro por pessoas de dignidade duvidosa a vanda lismo passando por rarissimas rusgas pelas forças de autoridade, assaltos, violencia avarias em que só acabas por sair 2 horas para além do serviço escalado por não haver pronto socorro disponivel...

Anónimo disse...

olha eu tive de aturar o cromo da 794, aquele que já tem lugar marcado no banco da frente e oferece sempre uns fones ou um porta chaves.
desta vez trouxe o seu rádio e lá fomos até á est. do oriente a ouvir fados, se fosse noutra carreira ainda mandava desligar, mas vale mais ouvir fados que o resto que se passa nesta carreira e uma pessoa abstrai-se dos cheiros e de mais de metade das pessoas que não paga bilhete, incluindo uma "mádame" que entrou, nem água vem nem água vai, mas qdo saiu deve ter-se lembrado q tinha dinheiro e apanhou um táxi, se a carris sabe desta e doutras situações e não se preocupa porque havemos nós de nos preocupar-mos? boas viagens

Condutor do TXXI disse...

Hoje andei na 106, das Galinheiras à Cç de Carriche apenas uns 3 titulos passaram na maquina, mas o autocarro ia cheio até à porta. Na Estrada Militar entrou uma familia enorme de ciganos, mas nada foi passado na maquina.
Numa paragem o motorista vê um homem a correr para o autocarro e espera, quando ele entra nem ai nem ui nem passe na maquina... Aquela gente que se conhece toda, a falar aos gritos da frente para a traseira do autocarro...

Quem deve adorar a 106 são os validadores dos bilhetes que estão sempre de folga. lol

equipier disse...

bem pelas coisas aqui contadas so dou graças a deus de fazer seroes na 28E onde nao se passa muitas coisas das descritas acima e agora ate estou na formação para os articulados (15E).
Boas serão as 1ªs partes dos serviços pois serão com os articulados depois as 2ªs com os pequenos (nos seroes) serão mais complicadas especialmente nos fins de semana pois a malta que frequenta a carreira deixa algo a desejar (a maioria nao todos).

Anónimo disse...

Duvido que exista outra profissão que tenha mais "ossos do ofício" do que ser motorista... da Carris.
Não há programa de apanhados, circo, teatro ou filme de comédia, que me faça rir mais do que sobreviver a um dia de "serviço público" ao volante de um autocarro... da Carris. Se a nossa vida é um filme real, quantos filmes vê um motorista da Carris por dia?

Faz-me lembrar uma senhora que um belo dia entrou no autocarro e disse-me: - "Tenho passe!"
À qual eu respondi: - "Eu também."
O silêncio seguinte foi de ouro.

Tens que criar jogos mentais para ultrapassar o absurdo do insólito, sem ofender ninguém, mas também não seres levado a descer ao nível deles, porque aí és vencido pela experiência.

Se nem o Mulder e a Scully dos Ficheiros Secretos conseguiam resolver casos, era o motorista... da Carris que conseguia, não?

A nós, só falta ter como acessório de fardamento uma esponja redonda avermelhada para colocar no nariz. A incitação ao transporte e seu eventual uso da máscara para "combater" a gripe, é apenas um ensaio.

Ass: A Faixa do Bucho.

Blackbelly disse...

É lastimável :( e depois queixam-se do estado do país, esquecendo-se que eles fazem o país! E as suas acções demonstram mesmo o que valem :(

Vou crando cada vez mais simpatia pelos motoristas e guarda-freios só por ler este blog!

José disse...

Pois é. Isso de lidar com o público tem muito que se diga. E, pelo que li de alguns comentários, até tenho a sorte de andar em carreiras civilizadas.

Anónimo disse...

Caro Rafael, desde já um abraço aqui do Colega da Musga :D
Ora, a sra do chapéu provavelmente ao dizer "O que aleija muita gente é o que se vê há muitos anos..." deveria provavelmente referir-se à própria cara dela, presumo eu :) Tens de perceber melhor estas coisas
De resto, bem estariamos nós se todos os cromos aparecessem apenas na 742... era um descanso ou tvz não...
Relativamente à 714, o colega deveria era não ter arrancado da paragem enquanto essa sra não saísse e voltassse a entrar pela frente (e os demais restantes prevaricadores, embora esses possam ter desculpa já que nos países de origem deve ser assim que abordam um autocarro) mas como tudo, é melhor fechar os olhos e seguir em frente, não vá haver alguma queixa por parte da dita passageira.
Uma vez um colega disse-me que já não conseguia muitas vezes olhar para os passageiros que entravam no autocarro, muito menos falar com eles. Respondi-lhe que não me via alguma vez a ter esse atitude... infelizmente digo que hoje já lhe dou alguma razão.
A culpa do que acontece lá fora parece ser sempre nossa... Se chove, a culpa é da Carris; Se ficas parado por causa de um acidente de 3ºs a 10 metros de ti e não passas, a culpa é da Carris; Se o passageiro foi despedido, Carris é culpada, etc etc etc.
E assim vamos nesta hortinha do canto da Europa...
Abraço e muita paciência para ti e para todos os restantes colegas que aqui te acompanham

Anónimo disse...

Ah sim, tembém acrescento que uma boa resposta ao já célebre "Tenho passe!" (e testada por mim claro) é "Então passe aí na máquina!" :)
Maldicência garantida :D
Bem haja

Ass: Colega da Musga

Nuno"Mouraria" disse...

Caro colega são por estas situações tao deveras banais e regulares que eu nem olho para eles! ponho o meu radiozito a bombar e ate prefiro que nem bom-dia me digam para nao ter que responder!
abraço e boas viagens!

Nuno"Mouraria"

André Bravo Ferreira disse...

Com a sorte que tens possivelmente esse do "anda lá pá" é aquele que apanhamos à umas semanas no 35 e que disse a mesma coisa.

Essa do "passa em Santa Apolónia?", "Não!" e deixa-se ficar tá demais.

Grande abraço.

Nuno"Mouraria" disse...

off topic: Caro colega fica aqui uma sugestão: Ja que tens curiosidade e fazes questão de contar histórias do nosso dia-a-dia, peço, se puderes, que possas fazr uma reportagem sobre a carreira 70 que circula por locais fantásticos aqui mesmo em Lisboa. Isto porque existe muita gente que não a conhece, e é das únicas carreiras em que o motorista é tratado de forma especial.
Fica a sugestão

abraço ass. Nuno"Mouraria"

Rafael Santos disse...

Caro Colega Nuno «Mouraria»,

A referência á carreira 70 está já ha muito pensada e até fui lá dar uma volta para poder falar nela, mas tem-me faltado o tempo para a escrita.

Brevemente surgirá.

Abraço

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