domingo, 29 de março de 2009

Na 35 com o morto-vivo que não tem pressa de morrer

Um domingo na 35 é sempre diferente! Nunca se sabe o que poderá acontecer, mas o que é certo é que há sempre algo para contar. Junto ao «Parque de Saúde» da Av.Brasil circula-se devagar porque alguns dos utentes aproveitam o sol que se faz sentir pela manhã, mas atravessando a avenida como se estivessem no passeio.

A pressa de quem não tem pressa...

Mais á frente aparecem os primeiros idosos que se vêem obrigados a sair de casa antes que a solidão tome conta deles. Na Avenida de Roma entra um senhor que passa o Lisboa Viva no validador e fica parado a olhar para mim, tal e qual como acontece nos filmes quando se carrega na tecla «pause». Dei-lhe os bons dias e disse que poderia sentar-se para evitar uma queda e para permitir a entrada dos restantes passageiros. Sentou-se...

Chegou ao C.Sodré saiu e na viagem imediatamente a seguir entrou novamente para regressar ao ponto de partida. Faltavam 4 minutos para partir quando começou a tocar com a chave de sua casa no balaústre, querendo alertar alguém que estivesse distraído. Mais um minuto e batia com os pés no soalho. Olhei pelo espelho e a reacção que vi, parecia que o senhor estava muito atrasado para entrar no serviço. No lado oposto ao dele alguém lhe informa que o autocarro só arrancava ás 10h58. E lá se conteve!

O morto que afinal está vivo! Eu transportei-o...

Ao longo destes, cerca de dois anos, que estou na Carris, já transportei algumas figuras públicas, mas hoje voltei a transportar o senhor Rogério Beja que talvez possa introduzi-lo neste "leque" dado que se tornou uma figura pública sobretudo pelos 13 anos que marca presença á porta da Procuradoria Geral da República. Sim é o "morto" que afinal está vivo!

A história deste senhor e do seu irmão é no seu conjunto surrealista. Está «há 13 anos, 4745 dias à espera de justiça em via pública. 7/11/64 Certidão de Óbito NC 235. O caso do Juíz Rogério Sampaio Beja e do irmão Notário, Victor Sampaio Beja. Cart.Praça Marquês de Pombal, nº 15-3º Lisboa. São Falsificadores de documentos, burlões e ladrões de bens alheios. Os carrascos testamenteiros. 4/8/2008 - 5 Agentes terroristas roubaram a bandeira nacional», assim se lê no calendário que hoje o senhor Rogério me ofereceu quando entrou no autocarro (ver imagem).

Educado, como sempre, costuma utilizar a carreira 35 e também já o vi pela 12. Todos os dias marca presença na Rua da Escola Politécnica e juntamente com ele tem dezenas de imagens que retratam a sua história e que também preenchem o verso do calendário que digitalizei para vos mostrar. Houve quem dissesse que, quer ele quer o seu irmão, estavam sepultados no cemitério de Aljustrel, mas eu cá confesso que o transportei hoje. Ou seja, recorrendo à ironia, o «morto» está mesmo vivo e a sua história está aqui resumida!

Ao senhor Rogério Beja e sua esposa - habituais utilizadores dos autocarros da Carris - aqui deixo publicamente o meu agradecimento pela oferta simbólica desta manhã :)

Mau instinto... mau desejo!

E como não há uma sem duas, nem duas sem três, termino esta abordagem ao dia de hoje com um episódio já da segunda parte do serviço. Duas senhoras ocupam os dois lugares da frente. Uma do lado esquerdo e outra do lado direito. A cruzar a conversa estavam as pessoas que ao longo do percurso iam entrando.

A conversa aumenta de tom e qualquer distraído que fosse mesmo na última fila, ficaria a saber o que se discutia na primeira fila. Foi algo do género:

A: Então a senhora não se lembra de mim?
B: Não me recordo de a ver em lado nenhum!
A: trabalhámos juntas no hospital dos capuchos...
B: sim trabalhei lá mas não me recordo de si.
A: Então e já está sozinha?... Veio dar uma voltinha!
B: Sim estou! Ando sempre sozinha...
A: Então mas o seu marido também era do estado não era? Deve ter uma boa reforma. Podia ir dar grandes passeios...
B: Sim era da Judiciária!... Mas a reforma já não é muita, porque aos poucos vão tirando.
A: Pois é este socialismo que temos!... Então e não levanta nada para si? Ah calculo que deixe para as despesas e levanta algum para dar ao filho, pois...

Confesso que já nem eu podia ouvir a forma como a senhora "A" abordava a senhora "B", mas adiante....

B: Sim , tem de ser, mas ele [€€€] também não é muito...
A: Mas tem onde? Em casa?
B: Não filha, no Espírito Santo....
A: Vi logo. Não faça isso que eles são uns gatunos! Meta mas é na Caixa Geral que tem a caderneta e vem lá tudo discriminado...

Aqui já me pareceu que a senhora "A" estava a querer apoderar-se da fraqueza da senhora "B", tal e qual um conto do vigário....

B: Ahaha ainda bem que me avisa.
A: E digo-lhe nunca quis cartões multibanco, porque se uma pessoa se esquece, deixa la o papel na maquina, quem o apanha, copia um cartão e saca-lhe o dinheiro todo!

Aqui espontâneamente esbocei um sorriso, ainda que de forma algo contida... Mas a senhora "B" reparou e perguntou-me:

B: Acha isto possível senhor motorista?, ao que respondi que «não me queria meter na conversa das senhoras, até porque poderia não concordar com um dos lados...»
A: Não concorda comigo?!?! Pudera é tão novinho... Ainda tem muito para aprender! Olhe digo-lhe que aconteceu comigo está bem?!
Eu: A senhora poderá ter a sua razão, mas não invalida que não aceite a opinião contrária e eu cá acho que não é possível criar um cartão e movimentar a conta através de um simples talão do multibanco, mas também só respondi à senhora daquele lado porque me dirigiu a palavra e como sou educado, respondi!»

A senhora "A" não gostou que eu tivesse tido opinião contrária e lá se despediu na Alameda, rogando-me uma praga: «Espero que lhe aconteça o mesmo que me aconteceu a mim, e que fique sem dinheiro na conta...»

Assim ficou apresentada a senhora "A", e se dúvidas haviam, elas dissiparam-se. Só poderá ter mau instinto para poder desejar coisas más aos outros, pois eu cá desejo-lhe tudo de bom, porque como diz o ditado, "não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti...».

Ora digam lá que não foi um domingo diferente do habitual. Houve de tudo um pouco e é isto que faz com que todos os dias sejam diferentes nesta profissão, que apesar de tudo, gosto de exercer... :)

Boas Viagens!

6 comentários:

Sónia e MI disse...

:)))
Realmente animação não faltou.
Ainda bem que apesar de tudo, a tua simpatia e bom-humor te dão inspiração para escreveres sempre crónicas tão engraçadas.

Já pensaste em editar o blog em livro?

Ricardo Figueiredo, disse...

...e não entalaste a senhora A na porta, nem subiste a suspensão? :-D

Anónimo disse...

essa ideia de subira suspensão é boa, é q entalar as velhas na porta dá mais cana, obrigado pela ideia:-)

PB disse...

Tu vives cada aventura!!! Qualuer dia fazes um livro, amigo.
Abraço

Pedro Almeida disse...

As dicas que se trocam aqui...isto realmente.
Ainda por cima o Ricardo (Bus Driver), um motorista exemplar com quem tive o prazer de viajar á uns tempos no L-389 (se a memória não me falha).
Eu nem devia dizer isto, mas se fosse motorista confesso que também fazia a "vida negra" a alguns passageiros que apanhasse pela frente.
Têm com cada saída, e com cada falta de educação que eu acho que é quase impossível uma pessoa conseguir aguentar aquilo por muito tempo sem "explodir".
De qualquer maneira se fosse motorista na minha terra nem tinha que me preocupar em levantar a suspensão (contam-se pelos dedos os autocarros com piso rebaixado e para não falar nos 4 camiões adaptados a autocarros que têm 4 escadas lá dentro).
É ver com cada escalada na 3ª idade, que é uma beleza lool.
Bem, vou ficar-me por aqui, antes que o senhor do blog se chateie lol

Abraço, boas viagens!!

Carlos Correia disse...

Há pessoas que nunca querem estar sozinhas na desgraça. Como tal, rogam pragas aos outros. Sem comentários mesmo...

Cumprimentos

Carlos Correia

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